domingo, 14 de novembro de 2010

DIRETORES (2)

Outro dia me deu a seguinte iluminação na cabeça. A respeito da minha ignorância quanto ao que se faz em cinema e tevê. Eu, ignorante, quando vejo programas de televisão ou filmes, a não ser que sejam casos muito extremos de linguagem e que sejam muito, muito diferentes do normal (por exemplo: um filme mudo; por exemplo: um programa de tevê sem pé nem cabeça) eu, ignorante, repito, daquilo, acho que são todos iguais. Todos. São imagens seqüenciadas, feitas com câmeras de vídeo e de filmar, com som gravado, e pessoas passando na frente e dizendo ou fazendo coisas mais ou menos parecidas o tempo todo. Não vejo, por exemplo, a menor diferença entre uma série de humor e uma série séria. A não ser, é claro, que uma me faz achar graça das coisas e a outra não. Do mesmo modo, um filme comédia e outro de terror pra mim são a mesma coisa, só que provocam reações diferentes.

Pois bem. Isso se dá porque eu não entendo do assunto. Porque, se entendesse, veria que não é assim

Estudando e conversando com diretores de cinema e tevê vou, aos poucos, descobrindo o tamanho da minha estupidez. Um filme não é diferente do outro só porque muda de gênero. Nada disso, absolutamente. Duas comédias, apenas porque são comédias, não quer dizer que sejam obras iguais como cinema. Mesma coisa com os programas da televisão. Uma novela não é igual à outra novela, embora eu ache que sejam. Eu acho que novelas são todas iguais, porque eu não entendo nada daquilo. Porque me falta a ciência, naturalmente.

Porque (meus amigos diretores de cinema e tevê me ensinando:) aquilo ali tem uma ciência. Onde eu vejo apenas imagens e sons jogados sobre uma tela iluminada, existe uma estética. As imagens não dispostas ao Deus dará, elas são editadas em um laboratório de edição. Também não são filmadas ou gravadas de qualquer jeito, elas têm uma orientação de eixo, de iluminação, são registradas em planos (gerais, médios, fechados, outros), alguns diretores as desenham antes e outros se reúnem com seus assistentes para programá-las. As locações também são cuidadosamente escolhidas, os atores, a equipe, há uma orquestração pensante por ali, existe um projeto econômico, um sentido social e o escambau. Aquilo tudo é calculado para criar a obra que eu assisto em casa ou no cinema. E cada produção tem seu caráter que a diferencia, mesmo que pertençam a gêneros iguais. Eu não noto as diferenças, porque não sei ler aquilo. Mas os especialistas meus amigos distinguem duas séries de comédia da televisão, que pra mim parecem ser rigorosamente a mesma, como quem vê as diferenças óbvias entre dois quadros de pintores diferentes. Ou mais ainda, entre um quadro e uma escultura, entre uma litografia e uma partitura de Verdi. Mas eu só vejo (ou só via, porque estou aprendendo) imagens em uma tela iluminada com um som ao fundo.

Curioso que para entender e distinguir as obras de cinema e tevê não se necessite ser um artista, um diretor ou um técnico destas profissões. Talvez porque tenham se popularizado muito. Mesmo que tenham menos de um século, essas duas artes e seus segredinhos estão na boca do povo. Basta ser um pouco mais aficionado, basta ser um espectador mais atento, para aprender a perceber as nuances e as especificidades por trás das obras de tevê e dos filmes. De algum modo, essas duas indústrias disseminaram o seu conhecimento a respeito de si próprias de maneira que (a não ser em casos de estupidez obtusa), não apenas somos capazes de reconhecê-las como arte, como temos a sensação de possuir algum domínio (ainda que simplesmente teórico) sobre muitas das suas técnicas. E apesar disso nem todos viramos diretores de cinema, não é qualquer um que dirige uma novela, e nem os governos nem as cadeias de televisão costumam entregar as suas produções na mão do primeiro aventureiro que aparece. Pode rolar, claro, de um incauto dirigir a novela das oito (que é às nove). Mas não é comum de acontecer (ou não deveria - ham!).

Com o teatro não é o que se dá. E é isso que eu disse aqui na semana passada e que repito hoje um pouco mais explicadinho.

No teatro tudo pode. Mas parece que ser diretor é a coisa que mais pode no teatro hoje em dia. Penso que funciona mais ou menos assim. No cinema e na tevê existem máquinas que gravam (ou filmam). Essas máquinas produzem alguma coisa que se vê e que reconhecemos como a obra. Para produzir uma obra que faça algum sentido e interesse outras pessoas além de nós que as produzimos, precisamos conhecer e seguir certas regras. Sem essas regras as máquinas não filmam. Sem essas regras as coisas filmadas ou gravadas não farão sentido para quem as assiste. O filme não acontece. Haverá ali atores, haverá ali uma locação e um roteiro, mas se as regras de filmagem, ou de gravação não forem seguidas (e às vezes desobedecidas, mas não porque não colocamos nada no lugar, e sim porque inventamos novas regras que têm funções análogas às velhas) se as regras não forem seguidas não há filme, não há série, não há novela, não há, portanto, obra.

E por que achamos que no teatro não há regras? Por que achamos que um ator e um banquinho são eles mesmos, sem regras, a obra que viemos assistir? Só porque não há máquinas que gravem (ou filmem)? Só por que não podemos levar o produto pra casa e guardar na prateleira da sala junto com os livros de ficção? Vamos pensar nos vídeos do youtube. Se um sujeito maluco liga uma webcam e dança pra nós e faz xixi na nossa frente, podemos dizer que estamos diante de algum tipo de obra, mas sabemos no nosso íntimo que não se trata de uma obra dramática. Por quê? Por que ele não finge. E fingir é uma das nossas regras. Para provocar – um documentário. No documentário pode-se não fingir e mesmo assim pode-se considerá-lo uma obra dramática. Quebrou-se uma regra. Porém, o diretor do filme colocou em seu lugar um sentido de ficção, que é uma nova regra, com função de preencher o lugar da regra que foi quebrada. O homem que faz xixi e o ator que finge que mija são obras em vídeo e nós estamos treinados para reconhecer e diferenciar essas obras. E quem nos treinou? A nossa cultura de filmes e de tevê foi que nos treinou.

E por que no teatro não é assim? Por que achamos que, no teatro, não há obra ou que tudo é obra (o que dá no mesmo)? É a luz que nos ilude? É a cenografia, as roupas dos atores, o nome deles no cartaz? E, se no teatro não há obra, então o que há? Bom, mas se não há obra, então é fácil. Porque uma obra dramática (vide a tevê e o cinema) exige edição, decupagem do roteiro, microfones, exige um plano para filmar, exige um sentido e outras coisas complicadas e que (sem as máquinas e seus manuais) seria impossível fazer. Mas ajuntar umas pessoas repetindo um texto decorado sob a luz de um refletor, ah, sim, isso naturalmente é muito mais simples e isto eu sei. E nem é preciso estudar muito para isso. Vamos lá, gente, vamos lá! - basta um pouco de entusiasmo e não desistir logo da primeira vez. E é mais ou menos assim que os diretores de teatro surgem e são qualquer um. Talvez não estejamos mais interessado pela obra. Talvez, no teatro, nosso interesse seja outro - quem sabe a simples reunião na sala escura (sem pipoca, porque faz barulho) seja  suficiente para nós. Melhor do que reconhecer a nossa própria ignorância. Que nos perdemos da obra e que não sabemos onde ela está.

Um comentário:

  1. gill, como vai?
    te assisti em hamlet. parabéns! quem me deu teu 'bolg' foi o marcelo flores e tenho lido tuas reflexoes sobre mercado/cena e investimento...
    se te interessar, tem um debate meu no Cultura e Mercado deste mes (http://www.culturaemercado.com.br/pontos-de-vista/investimento-em-teatro-na-bahia/). É sobre a Bahia. Mas só aparentemente. Porque as questões refletem profundamente o movimento da cultura nos últimos 8 anos.
    Bom, é isso.
    Grande abraço!

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