quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

MEU AMIGO GUILHERME

Essa semana passou aqui em casa o meu amigo Guilherme Diniz. Grande Guilherme Diniz, artista plástico, dos bons, formado na EBA da UFRJ, colega de alojamento do Fundão, mais do que isso, amigo de juventude de Além Paraíba. Grande Além Paraíba, como diz o poeta, cidade de onde já saíram tantos grandes valores e de onde ainda sairão muitos outros mais (ninguém fica lá). Guilherme Diniz, petista das primeiras horas, ex-vereador alemparaibano, contestador, brigão, brigou até com o PT, saiu, foi dar no PSTU, hoje eu não sei com quem anda flertando o Guilherme, esqueci de perguntar, falamos de tantos assuntos, dois anos que não nos encontrávamos, não há tempo pra lembrar de tudo.

Grande Guilherme, quebrando a cabeça, artista plástico no Brasil, morando em Além Paraíba, Angustura pra ser mais exato, não é nada fácil, estamos sempre sem dinheiro, não é fácil arrumar dinheiro. Também fareja os editais, conhece os editais (há editais para as artes plásticas também, claro, há editais para pintar o sete) e Minas tem ainda a lei Robin Hood, isenção fiscal, mesmo lance. Guilherme sempre me atualiza em relação às artes plásticas, eu sou uma besta dramática, sei do teatro e olhe lá. Me explicou sobre as Câmaras Setoriais, que o governo tenta que município, estado e federação falem a mesma língua, claro, é como tem que ser, um precisa saber do outro, não tem como.

Mas quando eu conto as nossas peculiaridades, como é, como vive o teatro, é difícil entender, mesmo para o brilhante Guilherme (Guilherme é brilhante, tem grandes idéias para a arte e a cultura no Brasil, mora em Angustura, ninguém lhe presta atenção, este é o mal do país). Então eu explico, tento explicar, não sei se sou claro, sou repetitivo, mas as pessoas só entendem quando repetimos muitas vezes a mesma cantilena. Ninguém aprende pensando, aprende de tanto escutar.

O teatro, Guilherme, são zilhões de projetos, muitos, inúmeros, infindáveis projetos. Não peças, não espetáculos nem intenções de espetáculos, mas projetos, propostas que devem estar adequados aos editais dos governos e às empresas. Por exemplo, para usar uma imagem da gente da roça. Eu planto tomate, a minha família sempre plantou tomate, entendemos tudo sobre tomate, a cor, o cheiro, o sabor. Por exemplo. Mas este ano não há ninguém interessado no nosso tomate no Ministério da Agricultura. Então plantamos caqui, que parece tomate, mas é mais bonito e é doce. – Mas como? – pergunta o Guilherme – Tomate é fundamental para a alimentação, para a saúde, não há povo que chegue à maturidade sem comer tomate. E eu respondo (e já sei que ele não vai entender, vou ter que repetir cem vezes isto): – Mas o que dá mídia esse ano é caqui.

E essa é só uma das distorções. Zilhões de projetos disputando o dinheiro à tapa. E não só o dinheiro, mas os teatros, as platéias, o pouco espaço que há nos jornais (“nos”? Mas que plural é esse para jornal na cidade do Rio de Janeiro, meu Deus?). E atores a rodo. Como nunca antes na história desse país. Os atores sobram, pululam, gritam no brejo como pererecas. Misturam-se profissionais, amadores, modelos, há de tudo um muito. Profissionais ficam anos sem trabalhar, amadores também, modelos também, todos ficamos. Anos esperando uma oportunidade. Então toca-lhe a fazer projetos, apresentar projetos, jogar projetos pro alto – o que Deus pegar é dele, o que cair no chão vamos ter que tentar produzir nós mesmos.

E as distorções, muitas, se sobrepondo, se superpondo e se acavalando. Um sujeito que leva dez anos pra aprovar um projeto no CCBB. Um outro sujeito que aprova dois projetos por ano no mesmo lugar. O primeiro é um incompetente? Não, o segundo é que conhece alguém quente. Mas onde há tanta pressão não há tempo para pensar, refletir, examinar, vale o soco, o pontapé e a cusparada. Logo, vale a mãozinha amiga também. Assim terminamos o ano passado, assim começamos o outro.

E o pior, Guilherme – ainda está aí, ouvindo? O teatro não é uma finalidade em si. A finalidade não é a obra que se produz, sua continuidade, sua oportunidade, sua legitimidade, seus valores estéticos, éticos, escambais. A finalidade é outra, é paa além do teatro. A finalidade é prover a tevê. É chegar à tevê, ou se justificar para a tevê, ou se utilizar da popularidade alcançada pela tevê. Ou – talvez, coitados, também é possível – tentar sobreviver sem a tevê.

Esse ponto é mais difícil de explicar. Mas tentemos. Com outra imagem da roça. Quando um sujeito pesca, sua intenção é vender o produto da pesca. E viver da pesca, alimentar a si mesmo e à família com a pesca, e preparar a próxima temporada de pesca. Mas aqui é como se o camarada pescasse simplesmente para estar no rio, seguindo a corrente em direção ao mar. Vai faminto, vai brigando contra as intempéries, vai tomando chuva e tomando sol. Não importa os peixes que vai pescando, é uma pesca esportiva, nada mais.

Porque no fim do rio ele vislumbra o mar. O grande mar. No mar pode não haver nada além de mais fome e ainda mais sede, naquele mundaréu de água que nunca se acaba. Mas também pode haver cardumes de baleias, e sereias que encantam, e baús de tesouros no fundo. Outros acharam todas essas coisas. Então, é claro que nós também vamos encontrar.