domingo, 21 de novembro de 2010

QUEM SOMOS?

Continuo aqui, pacientemente, fazendo meu levantamento semanal das peças em cartaz, das estréias, das despedidas dos teatros da cidade. Na falta de um estatístico mais confiável, vou eu mesmo contando e somando e dividindo. Sem as peças do meio de semana, porque não compro o jornal da cidade todo dia. Nos outros dias da semana eu leio outro jornal, mais barato e onde sai muita coisa de futebol.


Os números desse fim de semana voltaram aos números da segunda quinzena de agosto, quando comecei a fazer a lista. Estamos outra vez na casa dos 80 espetáculos (infantis + adultos). Justamente em novembro, quando tradicionalmente as peças começam a perder público para as festas de fim de ano. Só os infantis diminuíram, talvez as crianças já não estejam mais à mão nessa época. Os adultos, porém, subiram absurdamente.

Já disse aqui que, na falta de pesquisas e estudos de verdade, não sei nem tenho como saber se este número é bom ou ruim. Talvez seja pouco que uma cidade com tantos milhões de pessoas não tenha nem cem peças em cartaz no final de semana. Talvez seja muito. Quem sabe? Estarão essas peças todas lotando? Estarão esses espetáculos todos se sustentando com a bilheteria? Quantos desses espetáculos vendem mais de 50% por cento da lotação dos teatros? E quanto os que vendem menos do que isso arrecadam? E vivem do quê?

A questão que me chama atenção agora, para essa crônica (as outras questões também são boas, temos falado delas de vez em quando, retomaremos o assunto depois) a questão, dizia, que me chama atenção para essa crônica é outra.

Um dia desses, ao comentar sobre isso de teatro, um amigo de longa data e longuíssima carreira chamou a atenção para o fato de quase não conhecer nenhum nome dos que saem nos tijolinhos das peças listadas no jornal da cidade. Ora, em teatro se conhece todo mundo. Somos uma espécie de confraria. Fazemos filhos uns com os outros, cuidamos das crianças dos amigos (e muitas delas acabam entrando para o ramo, feito os pais e os colegas de seus pais). Então, como pode ser que um confrade do teatro carioca não saiba quem sejam as pessoas que estão em cartaz pelo Rio?

É o assunto da crônica. Em duas ou três palavras – às vezes me estendo muito nos meus assuntos e não há necessidade.

Passando os olhos pelos tijolinhos eu também, verifiquei, eu também, que há mesmo uma quantidade enorme de artistas no Rio de Janeiro estrelando as peças do jornal e dos quais (eu também) nunca ouvi falar. Ora, mesmo não tendo a carreira e os anos do meu amigo, tenho já um bom tempo nessa nossa profissão. Ainda peguei um ou outro dos antigos produtores que tiravam dinheiro do bolso pra montar peças. Ainda peguei o Prêmio Molière. Vi nascer a Lei Sarney, que virou Rouanet. Se isso não é ser velho (sempre pode ser que não) é perto de ser. E igualmente me espanta não saber quem é essa gente toda que está em cartaz.

São muitos novos. Não digo novos de idade, há deles para todas as gerações, mas novos no exercício do ofício. Surgem de todos os cantos. O Rio de Janeiro é um imã cercado de praias por todos os lados. Entram na profissão aos borbotões, é um tsunami de gente fazendo teatro. E profissionais – sempre. A febre do teatro, todos sabemos quem provocou no Brasil. Chama-se televisão. A televisão precisa basicamente de atores, muitos atores. E atrás desse enxame de atores aparecem diretores, cenógrafos, produtores...

Se um produtor de elenco da televisão precisar de um ator anão amanhã de manhã para a novela das seis, ou de uma mulher alta e magérrima para a novela das oito, ele precisa que esse ator exista e, de preferência, que esteja desempregado e tenha registro profissional. O registro profissional é relativamente simples. Há cursos que profissionalizam atores em seis meses ou menos. E, para os que não têm paciência com os cursos, existe a solução definitiva do Registro Provisório. Já os desemprego o teatro se encarrega de produzir.

Sendo basicamente um caminho de passagem para a televisão, onde nos tornaremos estrelas e seremos ricos, bonitos e famosos, o teatro vira a casa da Mãe Joana. Precisamos estar trabalhando nele para que nos vejam e nos levem para a televisão, mas precisamos que nos deixem entrar e sair quando formos chamados. Precisamos que as peças não durem. Precisamos da noite de estréia e duas semanas a mais. Depois: rua.

Eu estava no início do ano parado em algum aeroporto no meio de uma excursão do Púcaro Búlgaro. Avião atrasadíssimo, peguei uma dessas revistas que se lê em viagens pra matar o tempo. Com cara de séria (mas todas têm). O avião atrasou tanto que fui parar na sessão de Cartas dos Leitores e tinha lá um rapaz perguntando como fazia para virar ator e ficar famoso. O editor, que sabia tudo sobre todos os assuntos, não titubeou ao responder sobre este.

Primeiro ele mandava o rapaz entrar para uma academia e modelar o corpo. Depois sugeria que se mudasse para o Rio de Janeiro (o leitor não morava no Rio), de preferência nos arredores do Projac. E por fim praticamente aconselhava o camarada a ficar plantado na porta esperando passar algum diretor, ator, alguém que pudesse colocá-lo pra dentro. Nenhuma palavra sobre escola, interpretação, profissionalismo, nada de nada disso. Era um editor sério, já se vê.

Bom, pelo menos também não mandava o rapaz ir fazer teatro enquanto isso. Nem precisa. Porque outros muitos já mandam.

Esse assunto de atores rende. Voltaremos a ele da próxima vez.

domingo, 14 de novembro de 2010

DIRETORES (2)

Outro dia me deu a seguinte iluminação na cabeça. A respeito da minha ignorância quanto ao que se faz em cinema e tevê. Eu, ignorante, quando vejo programas de televisão ou filmes, a não ser que sejam casos muito extremos de linguagem e que sejam muito, muito diferentes do normal (por exemplo: um filme mudo; por exemplo: um programa de tevê sem pé nem cabeça) eu, ignorante, repito, daquilo, acho que são todos iguais. Todos. São imagens seqüenciadas, feitas com câmeras de vídeo e de filmar, com som gravado, e pessoas passando na frente e dizendo ou fazendo coisas mais ou menos parecidas o tempo todo. Não vejo, por exemplo, a menor diferença entre uma série de humor e uma série séria. A não ser, é claro, que uma me faz achar graça das coisas e a outra não. Do mesmo modo, um filme comédia e outro de terror pra mim são a mesma coisa, só que provocam reações diferentes.

Pois bem. Isso se dá porque eu não entendo do assunto. Porque, se entendesse, veria que não é assim

Estudando e conversando com diretores de cinema e tevê vou, aos poucos, descobrindo o tamanho da minha estupidez. Um filme não é diferente do outro só porque muda de gênero. Nada disso, absolutamente. Duas comédias, apenas porque são comédias, não quer dizer que sejam obras iguais como cinema. Mesma coisa com os programas da televisão. Uma novela não é igual à outra novela, embora eu ache que sejam. Eu acho que novelas são todas iguais, porque eu não entendo nada daquilo. Porque me falta a ciência, naturalmente.

Porque (meus amigos diretores de cinema e tevê me ensinando:) aquilo ali tem uma ciência. Onde eu vejo apenas imagens e sons jogados sobre uma tela iluminada, existe uma estética. As imagens não dispostas ao Deus dará, elas são editadas em um laboratório de edição. Também não são filmadas ou gravadas de qualquer jeito, elas têm uma orientação de eixo, de iluminação, são registradas em planos (gerais, médios, fechados, outros), alguns diretores as desenham antes e outros se reúnem com seus assistentes para programá-las. As locações também são cuidadosamente escolhidas, os atores, a equipe, há uma orquestração pensante por ali, existe um projeto econômico, um sentido social e o escambau. Aquilo tudo é calculado para criar a obra que eu assisto em casa ou no cinema. E cada produção tem seu caráter que a diferencia, mesmo que pertençam a gêneros iguais. Eu não noto as diferenças, porque não sei ler aquilo. Mas os especialistas meus amigos distinguem duas séries de comédia da televisão, que pra mim parecem ser rigorosamente a mesma, como quem vê as diferenças óbvias entre dois quadros de pintores diferentes. Ou mais ainda, entre um quadro e uma escultura, entre uma litografia e uma partitura de Verdi. Mas eu só vejo (ou só via, porque estou aprendendo) imagens em uma tela iluminada com um som ao fundo.

Curioso que para entender e distinguir as obras de cinema e tevê não se necessite ser um artista, um diretor ou um técnico destas profissões. Talvez porque tenham se popularizado muito. Mesmo que tenham menos de um século, essas duas artes e seus segredinhos estão na boca do povo. Basta ser um pouco mais aficionado, basta ser um espectador mais atento, para aprender a perceber as nuances e as especificidades por trás das obras de tevê e dos filmes. De algum modo, essas duas indústrias disseminaram o seu conhecimento a respeito de si próprias de maneira que (a não ser em casos de estupidez obtusa), não apenas somos capazes de reconhecê-las como arte, como temos a sensação de possuir algum domínio (ainda que simplesmente teórico) sobre muitas das suas técnicas. E apesar disso nem todos viramos diretores de cinema, não é qualquer um que dirige uma novela, e nem os governos nem as cadeias de televisão costumam entregar as suas produções na mão do primeiro aventureiro que aparece. Pode rolar, claro, de um incauto dirigir a novela das oito (que é às nove). Mas não é comum de acontecer (ou não deveria - ham!).

Com o teatro não é o que se dá. E é isso que eu disse aqui na semana passada e que repito hoje um pouco mais explicadinho.

No teatro tudo pode. Mas parece que ser diretor é a coisa que mais pode no teatro hoje em dia. Penso que funciona mais ou menos assim. No cinema e na tevê existem máquinas que gravam (ou filmam). Essas máquinas produzem alguma coisa que se vê e que reconhecemos como a obra. Para produzir uma obra que faça algum sentido e interesse outras pessoas além de nós que as produzimos, precisamos conhecer e seguir certas regras. Sem essas regras as máquinas não filmam. Sem essas regras as coisas filmadas ou gravadas não farão sentido para quem as assiste. O filme não acontece. Haverá ali atores, haverá ali uma locação e um roteiro, mas se as regras de filmagem, ou de gravação não forem seguidas (e às vezes desobedecidas, mas não porque não colocamos nada no lugar, e sim porque inventamos novas regras que têm funções análogas às velhas) se as regras não forem seguidas não há filme, não há série, não há novela, não há, portanto, obra.

E por que achamos que no teatro não há regras? Por que achamos que um ator e um banquinho são eles mesmos, sem regras, a obra que viemos assistir? Só porque não há máquinas que gravem (ou filmem)? Só por que não podemos levar o produto pra casa e guardar na prateleira da sala junto com os livros de ficção? Vamos pensar nos vídeos do youtube. Se um sujeito maluco liga uma webcam e dança pra nós e faz xixi na nossa frente, podemos dizer que estamos diante de algum tipo de obra, mas sabemos no nosso íntimo que não se trata de uma obra dramática. Por quê? Por que ele não finge. E fingir é uma das nossas regras. Para provocar – um documentário. No documentário pode-se não fingir e mesmo assim pode-se considerá-lo uma obra dramática. Quebrou-se uma regra. Porém, o diretor do filme colocou em seu lugar um sentido de ficção, que é uma nova regra, com função de preencher o lugar da regra que foi quebrada. O homem que faz xixi e o ator que finge que mija são obras em vídeo e nós estamos treinados para reconhecer e diferenciar essas obras. E quem nos treinou? A nossa cultura de filmes e de tevê foi que nos treinou.

E por que no teatro não é assim? Por que achamos que, no teatro, não há obra ou que tudo é obra (o que dá no mesmo)? É a luz que nos ilude? É a cenografia, as roupas dos atores, o nome deles no cartaz? E, se no teatro não há obra, então o que há? Bom, mas se não há obra, então é fácil. Porque uma obra dramática (vide a tevê e o cinema) exige edição, decupagem do roteiro, microfones, exige um plano para filmar, exige um sentido e outras coisas complicadas e que (sem as máquinas e seus manuais) seria impossível fazer. Mas ajuntar umas pessoas repetindo um texto decorado sob a luz de um refletor, ah, sim, isso naturalmente é muito mais simples e isto eu sei. E nem é preciso estudar muito para isso. Vamos lá, gente, vamos lá! - basta um pouco de entusiasmo e não desistir logo da primeira vez. E é mais ou menos assim que os diretores de teatro surgem e são qualquer um. Talvez não estejamos mais interessado pela obra. Talvez, no teatro, nosso interesse seja outro - quem sabe a simples reunião na sala escura (sem pipoca, porque faz barulho) seja  suficiente para nós. Melhor do que reconhecer a nossa própria ignorância. Que nos perdemos da obra e que não sabemos onde ela está.

domingo, 7 de novembro de 2010

DIRETORES

Em algum lugar da história recente do teatro nacional, eu não sei exatamente aonde, alguém parece ter decidido que não tem muita importância esse negócio de diretor de teatro. Pode ser porque, com os patrocínios, foram aumentando muito o número dos projetos e das produções, pode ser porque o dinheiro e o tempo não deram mais pra pagar uns bons diretores para todos os eventos, pode ser porque não haja mesmo bons diretores em quantidade pra tudo quanto é peça, podem ser outras as razões – históricas, econômicas, culturais – mas o fato é que isso de ter que haver diretores de verdade para existirem peças foi sendo deixado de lado ultimamente.

Claro, o crédito ainda está lá em todos os cartazes – “direção de” – e sempre existe algum incauto a completar a frase, mas estou falando aqui do sujeito diretor-diretor, do que entende de fato do riscado (e não apenas do bordado) do métier. Recentemente, li um artigo on line de um crítico paulista reclamando muito dos velhos e bons diretores do teatro brasileiro que, segundo ele, tinham perdido a mão (quando não a razão) e andavam tropeçando nas próprias fórmulas, insistindo nos mesmos truques antigos, afogados em  repertórios ruins e outras mazelas. Como todo critico que se preze, bons e maus, este senhor paulista, naturalmente, estará errado. Mas, se alguém chega a por em dúvida a arte e a habilidade dos Papas, que dirá dos noviços que surgem e se sucedem a toda hora (e com a mesma pressa desaparecem) encabeçando as fichas técnicas dos novíssimos espetáculos brasileiros?

Verdade seja dita, é uma arte ingrata. Sabemos no geral muito pouco sobre as outras funções estampadas no cartaz dos teatros. Mas somos capazes de algumas boas ilações (e às vezes até acertamos) a respeito do que fazem ou deixam de fazer atores, autores, figurinistas, cenógrafos, coreógrafos, iluminadores e outros tantos profissionais cujos nomes encontramos listados ali. Com relação à função onde se lê “diretor” ou “direção”, no entanto, reina a mais absoluta ignorância.

Outro dia me veio à cabeça a questão de que porque eu não me torno um diretor de cinema ou de tevê. São profissões respeitadas, ganha-se bem e sabemos muito mais sobre elas, por causa da popularidade que o cinema e a televisão desfrutam entre nós, do que sabemos qualquer coisa a respeito do seu título assemelhado em teatro. Porém, justamente porque sei ou acho que sei alguma coisa a respeito de dirigir filmes e telenovelas foi que desisti do negócio. Para virar um diretor de televisão, o camarada fica anos trabalhando como assistente, câmera, ou sei lá quantas outras coisas este indivíduo deve saber, antes que o representante da emissora lhe confie esta função de dirigir. Com o diretor de cinema não é muito diferente. Nos dois casos é preciso entender de um sem número de questões técnicas e artísticas (e financeiras, por que não?) e é tão grande a responsabilidade do cargo que realmente não é pra qualquer um – mesmo o pior diretor do pior seriado da televisão brasileira saberá mais destes assuntos do que eu.

Para virar diretor de teatro, no entanto, parece não ser preciso coisa alguma além de querer atender pelo epíteto. É alguém para completar a ficha técnica. Alguém para um olhar de fora. Alguém para dizer isto está bom ou isto não funciona, ou saia deste lado e entre pelo lado de lá para não atrapalhar o colega. Ou não pisem nos móveis porque eles estragam. Os espetáculos se resolvem por um bom ator, ou por um bom autor, cenário, luz e figurino, ou, se por nada disso, pelo menos por uma platéia complacente e desavisada, uma crítica tacanha e uma mídia que não está nem um pouco interessada no produto que vende.

Deste modo, tanto os maus diretores quanto os bons (e há deles) são igualmente importantes ou desimportantes para o que se faz hoje em dia pelos palcos da cidade. O público se guia e se referencia pelo realismo que conhece desde criança do cinema e da tevê (aqui eles de novo). E os diretores que não são diretores, mas assinam diretores, também. O problema principal é que, ao contrário dos seus homônimos das telas, os diretores das peças – e os produtores que os colocam ali e os atores que fingem acreditarem neles e os críticos que os elogiam e todo o resto – não estão nem um pouco interessados, nem são cobrados a se interessar, por todo o aparato técnico e o sem número de questões éticas e estéticas que o teatro profissional contemporâneo suscita.

Naturalmente devem estar pensando: aqui não há equipamentos caros a estragar, nem horas de estúdio a serem pagas, nem o Ibope vem cortar o meu pescoço, nem tenho rolos de filme a perder, e, seja como for, as pessoas sairão divertidas ou entediadas daqui, mas tanto faz. Porque tudo o que as pessoas querem, quando vão ao teatro, é olhar para o ator famoso de perto, ou aplaudir o filho que virou artista, ou viajar numa peça malfeita, ou sei lá o que as pessoas querem ao assistir este espetáculo e de qualquer modo não tenho nada com isso. Porque não fui eu quem fiz esse mundo e não tenho porque me lixar com o erro dos outros.

De fato, parece que não há problema em que se dê a direção dos nossos espetáculos a qualquer um. Pelo menos os não iniciados não perturbam o nosso negócio nem nos enchem o saco. Semana que vem voltaremos ao assunto.