Quando eu comecei a me
imiscuir no teatro profissional carioca, no começo dos anos oitenta,
costumava-se dividir a produção teatral em duas categorias: o
teatro comercial e o teatro não comercial. O termo teatro comercial era usado
para um tipo de espetáculo e de modo de produção com olho grande no lucro da
bilheteria. Não comercial era todo o resto. Era uma época anterior à Era da
Produção Incentivada e basicamente todo o teatro profissional era produzido com
recursos próprios. Podia haver (e havia) umas poucas empresas que esporadicamente
patrocinavam montagens teatrais, mas o dinheiro também era delas mesmas (não de
isenção fiscal) e não se compara ao montante que se vê aplicado no teatro hoje.
A produção comercial mirava basicamente o público endinheirado das classes
médias das grandes cidades. A produção não comercial também podia disputar esse
mesmo público, ou se lançava a outros estratos sociais
específicos, como estudantes, intelectuais, trabalhadores do comércio, gente
com menos dinheiro em geral. A fórmula do teatro comercial era mais ou menos a
mesma: um texto digestivo, atores conhecidos do grande público, um teatro bem
localizado com pelo menos trezentas poltronas confortáveis, ingressos caros, temporadas longas. O teatro
não comercial não tinha uma fórmula especifica, com as produções se adequando à
proposta de criação do espetáculo, nos teatros mais em conta, nos horários
disponíveis e ao preço que fosse possível cobrar. Por outro lado, suas ambições
artísticas se pretendiam mais abrangentes que as do teatro comercial, com maior
liberdade na escolha de textos, temas e propostas de encenação. Basicamente, os
“dois teatros” são o prolongamento e o desenvolvimento dos eixos fundamentais
das antigas companhias dos grandes atores do século passado. Essas companhias
viviam o dilema de conciliar seus interesses comerciais e artísticos. O teatro
brasileiro contemporâneo, ao longo dos anos 60-70, encarregou-se de dividir e separar
as duas coisas. De qualquer modo, comercial ou não nenhuma produção que pretendesse sobreviver
poderia deixar de considerar a relação entre o seus custos de produção e manutenção
e sua possibilidade de arrecadação com a bilheteria. Mesmo que o teatro
comercial praticasse ingressos a um preço mais caro que o não comercial, ambas os
tipos de produção (salvo algumas experiências mais radicais de alguns grupos e artistas) precisavam cuidar para que a venda dos ingressos fizesse frente aos
custos do produto. A Era do Patrocínio Incentivado desequilibrou totalmente
essa difícil e delicada relação.
Por um lado, matou o
teatro comercial. Pelo menos, tal como eu o conheci naquele tempo. As propostas de teatro comercial às quais eventualmente ainda
chamamos assim hoje em dia, são praticamente todas realizadas com dinheiro
incentivado. O produtor não corre risco, não perde nada. Talvez ganhe alguma
coisa, mas perder, isso ele não perde. O custo que não estiver coberto por
dinheiro incentivado simplesmente não entra na planilha de produção. Não fará
parte do processo. Ainda assim, mesmo com dinheiro incentivado, não é certo que essas produções alcancem êxito, em termos estritamente comerciais. Qualquer um que tenha produzido antes e depois dos incentivos sabe que o dinheiro dos impostos despejado na linha de produção teatral não garante o fechamento das contas no azul - como alguém podia pensar que se desse, quando essa coisa toda começou. A não ser no caso de temporadas curtas. Com dinheiro público à disposição (embora ele não baste, embora não para todos), os custos subiram muito. As temporadas não podem
ultrapassar o tempo coberto pela captação de recursos de patrocínio. O preço
dos ingressos, que tende a cair para atender às contrapartidas exigidas pelos
governos, não cobre mais a divulgação, o cenário, o aluguel do teatro, os cachês dos atores e
da técnica. Para os produtores comerciais do presente (mesmo não botando um
centavo de próprio) é mais lucrativo
saltar de um projeto para outro, garantindo um percentual pela captação, e mais
cachê pela parte executiva do projeto. (No teatro comercial de verdade, ou histórico, o
produtor só começava a ganhar quando conseguia pagar as contas da produção do
espetáculo.) Atualmente os produtores mais bem sucedidos encontram-se refugiados nos grandes musicais, para onde também migraram as plateias com dinheiro (as que sempre o tiveram e as participantes da nova classe média nacional). Mas duvido que as contas dos grandes musicais também estejam
fechando, mesmo que lhes seja tolerado praticar preços de ingressos acima da
média e em teatros enormes, particulares ou públicos.
O teatro do lucro está morto. Todo o teatro
brasileiro contemporâneo é um grande celeiro de experiências não
comerciais. Ainda que, em sua maioria, as empresas produtoras sejam denominadas "com fins lucrativos" em seus contratos sociais (mas isso é só uma parte das idiossincrasias desse teatro que praticamos). O sujeito que ganha dinheiro com teatro hoje em dia, aquele que por acaso enriqueça nesse mister, pertence a uma de três categorias possíveis: ou é um sortudo abençoado, ou é um admistrador único que merece ser tomado como referência e estudado, ou é um ladrão (sim, por aqui também há ladrões, somos todos brasileiros - ou não?). Mas, se os produtores (os normais) não conseguem mais se haver em como lucrar com esta velha profissão, o fim do teatro comercial (com a passagem do ônus da produção para o subsídio estatal) também alegrou à outra gente. Afinal, significou o fim das “amarras” a que precisavam se submeter os artistas, muitas vezes cooptados por aqueles espetáculos rasos,
com seus textos apelativos e resultados de duvidosa qualidade artística. Sem precisar se preocupar com a bilheteria para o equilibrio das contas, nos lançamos à elevação do nível da produção moderna. E tome-lhe
fazer peças de vanguarda, clássicos empombados e coisas assim. Tome-lhe arriscar-se em encenadores sem passado nem futuro. Aqui vislumbram (artistas ególatras, encenadores de ocasião e outros) a
possibilidade de transformarem os seus devaneios particulares, a custa do dinheiro
público, em experiências estéticas onde nem a própria encenação,
nem coisa alguma precise prestar contas a ninguém, salvo aos tecnocratas dos
governos e aos representantes das empresas patrocinadoras que lhes afagam as
cabeças tresloucadas. Numa palavra, ninguém mais precisa pensar no público. Que
se dane o público, que se foda o público e que fique em casa assistindo
novela, ou vendo filmes pela TV a cabo. Ou na Internet, a onda agora é a Internet. Faço teatro para o meu próprio umbigo e
para os técnicos dos governos (que de resto também não vão assistir ao que eu
faço e quando vão não gostam) e para amigos empresários com dinheiro de imposto
sobrando.
A relação entre teatro e
bilheteria é uma relação que, naturalmente, traduz o interesse da
produção teatral pelo público consumidor dos espetáculos. Se a sobrevivência
econômica do teatro hoje em dia não depende mais dessa relação, não significa, ou
não deveria significar, em todo o caso, que tenhamos que abrir mão do público
de uma forma tão geral e irrestrita (não nos servem porque não nos sustentam, não
nos servem porque não nos entendem). O teatro comercial, que está morto, e o
teatro não comercial que à época lhe fazia oposição estavam interessados em
plateias específicas, tinham planos para elas, um repertório, uma ideia qualquer
da função do teatro nesse mundo de meu Deus, que passava necessariamente pela aceitação ou
rejeição dessas plateias aos seus experimentos teatrais. Mas parece que agora não precisamos mais de ninguém...
(Continua)
O recurso incentivado é bom, fundamental. Mas acredito que deveria ser reservado a produções amadoras, ou a artistas iniciantes, ou a quem não tivesse condições de arcar com a produção. Preferencialmente, poderia contemplar espetáculos em teatros da periferia, contribuindo para fomentação e divulgação da arte nos meios mais populares. O teatro profissional precisa sair da zona de conforto e correr atrás da grana, vendendo-se com produto de consumo. Abraço, Gil.
ResponderExcluirHá controvérsias... O teatro no mundo inteiro é incentivado. Poucos são os lugares do mundo onde alguns espetáculos conseguem viver com suas prórprias pernas. A conjuntura de produção mudou no mundo inteiro. Os custos são outros, a época é outra. A parte do teatro profissional que conseguiria sobreviver sem um aporte de dinheiro incentivado NO MUNDO é mínima. Seria condenar o teatro profissional carioca, a ser só os musicais que hoje são praticamente a única coisa que faz dinheiro por aqui. O fato é que, mesmo com dinheiro incentivado, não existe zona de conforto.
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