sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Uma relação complicada (2)

Estive revendo a última postagem, dei uma arrumada no texto, estava meio confuso. Melhorou alguma coisa com essa minha arrumada, mas ainda falta. Vou ajeitando até ficar legal. Essa uma diferença boa a favor do blog, em comparação com o jornal e a revista impressos, por exemplo. No blog a gente pode editar o texto e melhorá-lo o tempo todo. O que pode fazer com que o leitor volte àquele texto outra vez, releia, repense. É uma diferença boa.
O que eu estou tentando dizer, basicamente, nesses textos de agora é uma coisa só. Ou duas. Primeiro, chamar a atenção para a morte do teatro comercial ao longo do processo de instalação da Era dos Incentivos. Depois, relacionar esse fato com alguns dos nossos problemas atuais.
O teatro pode (ou podia) ser pensado, ao longo de sua história, como um meio para ganhar dinheiro ou para enlevar o público. Frequentemente ele é pensado para as duas coisas – ou era. Às vezes favorecemos o seu sentido comercial, às vezes o seu sentido lúdico – ou artístico, como queiram. Todos os artistas, em todos os ramos da arte vivem ou viveram esse drama tortuoso – enriquecer a mim ou a quem consome de mim? Em algum momento, uma certa parcela do teatro brasileiro optou por fazer dinheiro como prioridade (se possível sem deixar de fazer arte, mas ligado no dinheiro, principalmente). Grandes teatros, bons artistas, temporadas longas, baixo custo de produção, ingressos caros, público em quantidade, essa a fórmula do teatro comercial. Um problema que surgisse em alguma  das variáveis dessa equação comprometeria todo o resultado. Ok. Do outro lado estava a outra parcela do teatro, privilegiando o seu sentido lúdico – ou artístico, como queiram.
Não é que os artísticos abrissem mão do dinheiro. Muito pelo contrário. Só os doidos abrem mão do dinheiro. Os artísticos (e todos) dependiam da bilheteria e queriam ganhar com a bilheteria. Alguns artísticos visionários podiam inclusive ter ambições até maiores em termos de grana que as ambições dos comerciais. Mas o seu repertório era outro, a sua plateia podia abrigar também um pessoal sem muito dinheiro, nem sempre era possível pagar os atores mais conhecidos ou atraí-los para as suas produções (embora nem sempre as produções dos artísticos mirassem os atores mais conhecidos). Além disso era pouco provável que conseguissem os melhores teatros e horários. Enfim, se os artísticos queriam sucesso, não era seguindo a cartilha dos comerciais. Mesmo assim, vez por outra, havia êxitos de bilheteria também entre eles (Salve os visionários! Os visionários!).  Por alguma razão a peça caia nas graças do público e o público, sempre ele, a variável de peso maior em qualquer das equações nessa época, aparecia no teatro aos borbotões.
Em algum momento começa a Era Incentivada (a Lei Sarney é de 86 e a Rouanet de 91). Não é que não houvesse patrocínio antes da Era Incentivada. Algumas produções recebiam patrocínio de algumas empresas (poucas). Bastante apoios também, descontos em passagens nas viagens aéreas das excursões, nos hotéis, na compra de alguns materiais, etc. Era a época do INCEN, das Cooperativas, dos empréstimos da Caixa Econômica (estou misturando os períodos e os meios, mas vale). Quer dizer, algum se arrumava – às vezes. Mas pouco. Na maior parte das vezes – pouco. E, de qualquer modo, quem tinha dinheiro próprio pra botar não botava esse dinheiro todo que é hoje. É como se disse: para render algum, a produção precisava não custar muito. Divido o meu custo por um determinado número de ingressos, por um determinado tempo e um determinado valor. Se o público não comparecia, babau. Vendi meu carro, peguei dinheiro no banco pra investir, olha eu aí todo encralacrado. Fudeu-se.
Mas com o Incentivo isso tudo muda. Ninguém se ferra, no final das contas. Ou não deveria. Com o aperfeiçoamento do mecanismo, o produtor não entra com nada, o risco de perder as cuecas vai ficando igual a zero, próximo de zero. Mas os custos sobem, em cascata. Talvez as peças sempre custassem o que começaram a custar a partir de então, mas como não se tinha esse dinheiro antes não se pagava, ou pagava-se menos. E alguns custos dos espetáculos certamente sobem pela pressão da especulação. Naturalmente. Alguém também fará um estudo pra ajudar a desvendar esse ponto. O que é fato, o que é mito, o que é roubo, o que é real. Seja o que for, resultou que um espetáculo de teatro hoje pode custar entre 50 mil e 15 milhões. Naquela época antiga, isso podia ficar entre os mesmos 50 mil e o quê? 200... 300 mil? No máximo. Deus me livre de mais do que isso. E quanto precisaria cobrar uma peça que custasse 300 mil e durante quanto tempo para pelo menos recolocar esse dinheiro no bolso de seus produtores e ainda garantir o salário de todo mundo, a verba de mídia, o aluguel do teatro, etc., etc.?
A diferença entre os 200 mil de ontem e os 15 milhões de hoje (vamos deixar por 200 mil que já está bom) é que eu não preciso devolver os 15 milhões a ninguém. Como no cinema. No cinema eu também não devolvo os 12 milhões da produção mais cara que se tem notícia até hoje (digamos que seja esse o valor). Melhor ainda. No cinema eu vendo ingressos suficientes para ter lucro. O melhor negócio no Brasil é o cinema. O dinheiro sai todo do governo, o lucro vem todo para o meu bolso (todo não, há impostos, naturalmente). Mas no cinema eu vendo um milhão de ingressos, dois milhões, cinco milhões de ingressos em casos excepcionais. Um hipotético teatro de 3 mil lugares teria que lotar quantas sessões durante quantos meses para atingir um milhão de pessoas? Meses não há sessões suficientes, com temporadas de quinta ou de sexta a domingo. E onde está esse teatro de 3 mil lugares que lota? Mas estou derivando, não é sobre isso que eu quero falar.
O que eu quero falar é de uma orfandade e de suas consequências. Junto com o aumento dos custos das peças vem o aumento do número de peças produzidas (essa aparente idiossincrasia se deve ao volume de dinheiro despejado na produção), a redução do tamanho das temporadas (há muitas peças disputando os mesmos teatros e plateias), a diminuição do valor do preço dos ingressos. Os ingressos caem de preço porque o Incentivador (governo e patrocinadores) exigem contrapartidas para o uso do dinheiro público. Nada mais natural. Se o dinheiro é do povo, o teatro deveria voltar para o povo. A um custo reduzido, se possível de graça, ou pelo menos em meias-entradas. Os governos (e os patrocinadores adotam o mesmo discurso) também acreditam que ingressos baratos levam mais gente ao teatro. Parece o certo. Do jeito que está sendo feito, no entanto, não é o que vemos na maioria dos casos.
Como a parte do teatro que fazia teatro para a bilheteria morreu (já que a bilheteria nada significa nas novas planilhas de produção), tanto no caso do teatro estritamente comercial como no caso do teatro não comercial que lhe fazia sombra, ficou para nós um teatro não comercial, em que as experiências de montagem não precisam se preocupar com a frequência do público. Ele (o público) virá porque o ingresso é barato, parece ser o pressuposto de todos os novos produtores de um momento para cá. E, mesmo que não venha, não tem importância porque o negócio está todo pago, até onde pode ir.
Claro que fazer teatro sem uma preocupação estrita com o lucro pode ser (e é) uma boa coisa. Alguém já disse que o teatro é uma arte de exceção. Mesmo as temporadas de maior sucesso não se comparam, como já vimos acima, com os sucessos do cinema e muito menos – é até covardia querer comparar – com os maiores fracassos da televisão. E há muitos espetáculos para os quais um público médio de 50, 30, 20 pessoas por noite pode ser considerado excelente. Mas ainda há na cidade inúmeras salas com 300 lugares ou mais e nelas são feitas inúmeras peças com essa expectativa de espectadores e eles não vêm. Nem, em alguns casos, quando os mandamos buscar com ônibus fretados pela produção.  Está certo, na época antiga, em muitos casos, eles também se recusavam a subir no ônibus do teatro. Mas eu não gastava tanto dinheiro com o bilhete dessa passagem. Ao aumento do investimento não parece corresponder um aumento pelo interesse no produto que fabricamos.
O teatro comercial era acusado por sua visão estreita do fenômeno teatral. Os artísticos foram responsáveis por grande parte do nosso melhor teatro. Porém os comerciais eram uma referência permanente. Buscavam boas peças (ainda que por vezes insossas), artistas capazes de mobilizar a atenção das plateias (ainda que em certos casos ruins), pressionavam para a manutenção dos espetáculos em cartaz (ainda que normalmente a um preço alto na bilheteria), preocupavam-se sobremaneira com as questões trabalhistas, legais e autorais (ainda que fossem via de regra péssimos patrões e pão-duros).
Sem a concorrência dos comerciais e com o aporte das verbas de Incentivo, os sobreviventes artísticos deveriam ter construído um mundo melhor para o teatro nacional. Espetáculos mais interessantes, que atraíssem mais gente e que não morressem na primeira crise de bilheteria (essa outra acusação  que se fazia aos comerciais – que morriam na praia, quando a fórmula do sucesso não dava certo no primeiro mês). Mas os artísticos também não resistiram à nova ordem que se estabeleceu.
Sem os comerciais, todo o teatro se tornou artístico. Inclusive os comerciais que não estivessem totalmente mortos, estes se embrenhando disfarçados por entre as entrelinhas dos novos editais de patrocínio. E outras experiências mais insuspeitas: amadoras, neutras, qualquer coisa. E por quê? Porque o foco de quem faz teatro, com a cultura do Incentivo, desviou-se da produção e se concentrou na captação dos recursos incentivados. Se a possibilidade do lucro com a bilheteria, para o cinema, representou a continuidade de uma certa preocupação com a excelência do produto final e sua comunicação com o grande público, a completa ausência dessa possibilidade como regra, no teatro, estimulou a criação de um universo paralelo de espetáculos-projeto, destinados basicamente a convencer ou apenas justificar o fomento que os novos mecenas dos editais lhes destinam. Provavelmente, os governos acreditam que os espetáculos-eventos (e que outro nome lhes podemos dar, já que duram exatos dois meses, com ou sem espectadores a prestigiá-los), têm maior potencial de atrair as plateias pelo poder de mobilização que provoca toda essa quantidade de peças no cartaz. Mas que público assistirá às 200 novas peças de teatro adulto profissional que estreiam todos os anos no Rio de Janeiro? E quantas não serão em São Paulo e alhures? Quem sabe delas, quem acompanha os seus processos de criação, quem as distingue e as dirige para seus espectadores específicos? Os críticos não veem essas peças todas, nem os jurados dos prêmios, nem os próprios artistas, nem os tecnocratas dos governos, nem os representantes de marketing das empresas que lhes repassam as verbas.

(Segue..)

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Uma relação complicada

Quando eu comecei a me imiscuir no teatro profissional carioca, no começo dos anos oitenta, costumava-se dividir a produção teatral em duas categorias: o teatro comercial e o teatro não comercial. O termo teatro comercial era usado para um tipo de espetáculo e de modo de produção com olho grande no lucro da bilheteria. Não comercial era todo o resto. Era uma época anterior à Era da Produção Incentivada e basicamente todo o teatro profissional era produzido com recursos próprios. Podia haver (e havia) umas poucas empresas que esporadicamente patrocinavam montagens teatrais, mas o dinheiro também era delas mesmas (não de isenção fiscal) e não se compara ao montante que se vê aplicado no teatro hoje. A produção comercial mirava basicamente o público endinheirado das classes médias das grandes cidades. A produção não comercial também podia disputar esse mesmo público, ou se lançava a outros estratos sociais específicos, como estudantes, intelectuais, trabalhadores do comércio, gente com menos dinheiro em geral. A fórmula do teatro comercial era mais ou menos a mesma: um texto digestivo, atores conhecidos do grande público, um teatro bem localizado com pelo menos trezentas poltronas confortáveis, ingressos caros, temporadas longas. O teatro não comercial não tinha uma fórmula especifica, com as produções se adequando à proposta de criação do espetáculo, nos teatros mais em conta, nos horários disponíveis e ao preço que fosse possível cobrar. Por outro lado, suas ambições artísticas se pretendiam mais abrangentes que as do teatro comercial, com maior liberdade na escolha de textos, temas e propostas de encenação. Basicamente, os “dois teatros” são o prolongamento e o desenvolvimento dos eixos fundamentais das antigas companhias dos grandes atores do século passado. Essas companhias viviam o dilema de conciliar seus interesses comerciais e artísticos. O teatro brasileiro contemporâneo, ao longo dos anos 60-70, encarregou-se de dividir e separar as duas coisas. De qualquer modo, comercial ou não nenhuma produção que pretendesse sobreviver poderia deixar de considerar a relação entre o seus custos de produção e manutenção e sua possibilidade de arrecadação com a bilheteria. Mesmo que o teatro comercial praticasse ingressos a um preço mais caro que o não comercial, ambas os tipos de produção (salvo algumas experiências mais radicais de alguns grupos e artistas) precisavam cuidar para que a venda dos ingressos fizesse frente aos custos do produto. A Era do Patrocínio Incentivado desequilibrou totalmente essa difícil e delicada relação.
Por um lado, matou o teatro comercial. Pelo menos, tal como eu o conheci naquele tempo. As propostas de teatro comercial às quais eventualmente ainda chamamos assim hoje em dia, são praticamente todas realizadas com dinheiro incentivado. O produtor não corre risco, não perde nada. Talvez ganhe alguma coisa, mas perder, isso ele não perde. O custo que não estiver coberto por dinheiro incentivado simplesmente não entra na planilha de produção. Não fará parte do processo. Ainda assim, mesmo com dinheiro incentivado, não é certo que essas produções alcancem êxito, em termos estritamente comerciais. Qualquer um que tenha produzido antes e depois dos incentivos sabe que o dinheiro dos impostos despejado na linha de produção teatral não garante o fechamento das contas no azul - como alguém podia pensar que se desse, quando essa coisa toda começou. A não ser no caso de temporadas curtas. Com dinheiro público à disposição (embora ele não baste, embora não para todos), os custos subiram muito. As temporadas não podem ultrapassar o tempo coberto pela captação de recursos de patrocínio. O preço dos ingressos, que tende a cair para atender às contrapartidas exigidas pelos governos, não cobre mais a divulgação, o cenário, o aluguel do teatro, os cachês dos atores e da técnica. Para os produtores comerciais do presente (mesmo não botando um centavo de próprio) é mais lucrativo saltar de um projeto para outro, garantindo um percentual pela captação, e mais cachê pela parte executiva do projeto. (No teatro comercial de verdade, ou histórico, o produtor só começava a ganhar quando conseguia pagar as contas da produção do espetáculo.) Atualmente os produtores mais bem sucedidos encontram-se refugiados nos grandes musicais, para onde também migraram as plateias com dinheiro (as que sempre o tiveram e as participantes da nova classe média nacional). Mas duvido que as contas dos grandes musicais também estejam fechando, mesmo que lhes seja tolerado praticar preços de ingressos acima da média e em teatros enormes, particulares ou públicos.
O teatro do lucro está morto. Todo o teatro brasileiro contemporâneo é um grande celeiro de experiências não comerciais. Ainda que, em sua maioria, as empresas produtoras sejam denominadas "com fins lucrativos" em seus contratos sociais (mas isso é só uma parte das idiossincrasias desse teatro que praticamos). O sujeito que ganha dinheiro com teatro hoje em dia, aquele que por acaso enriqueça nesse mister, pertence a uma de três categorias possíveis: ou é um sortudo abençoado, ou é um admistrador único que merece ser tomado como referência e estudado, ou é um ladrão (sim, por aqui também há ladrões, somos todos brasileiros - ou não?). Mas, se os produtores (os normais) não conseguem mais se haver em como lucrar com esta velha profissão, o fim do teatro comercial (com a passagem do ônus da produção para o subsídio estatal) também alegrou à outra gente. Afinal, significou o fim das “amarras” a que precisavam se submeter os artistas, muitas vezes cooptados por aqueles espetáculos rasos, com seus textos apelativos e resultados de duvidosa qualidade artística. Sem precisar se preocupar com a bilheteria para o equilibrio das contas, nos lançamos à elevação do nível da produção moderna. E tome-lhe fazer peças de vanguarda, clássicos empombados e coisas assim. Tome-lhe arriscar-se em encenadores sem passado nem futuro. Aqui vislumbram (artistas ególatras, encenadores de ocasião e outros) a possibilidade de transformarem os seus devaneios particulares, a custa do dinheiro público, em experiências estéticas onde nem a própria encenação, nem coisa alguma precise prestar contas a ninguém, salvo aos tecnocratas dos governos e aos representantes das empresas patrocinadoras que lhes afagam as cabeças tresloucadas. Numa palavra, ninguém mais precisa pensar no público. Que se dane o público, que se foda o público e que fique em casa assistindo novela, ou vendo filmes pela TV a cabo. Ou na Internet, a onda agora é a Internet. Faço teatro para o meu próprio umbigo e para os técnicos dos governos (que de resto também não vão assistir ao que eu faço e quando vão não gostam) e para amigos empresários com dinheiro de imposto sobrando.
A relação entre teatro e bilheteria é uma relação que, naturalmente, traduz o interesse da produção teatral pelo público consumidor dos espetáculos. Se a sobrevivência econômica do teatro hoje em dia não depende mais dessa relação, não significa, ou não deveria significar, em todo o caso, que tenhamos que abrir mão do público de uma forma tão geral e irrestrita (não nos servem porque não nos sustentam, não nos servem porque não nos entendem). O teatro comercial, que está morto, e o teatro não comercial que à época lhe fazia oposição estavam interessados em plateias específicas, tinham planos para elas, um repertório, uma ideia qualquer da função do teatro nesse mundo de meu Deus, que passava necessariamente pela aceitação ou rejeição dessas plateias aos seus experimentos teatrais. Mas parece que agora não precisamos mais de ninguém...
(Continua)