CONCENTRAÇÃO E ROUBALHEIRA, OS MALES DESSA LEI SÃO
E aí, resolveu? Não, não resolveu e está longe de resolver. Peguei
uma matéria aqui de 1996, cinco anos depois do começo da Era Rouanet que o
sujeito reclamava da concentração da capitação no Sudeste do Brasil (leia-se no
Rio e São Paulo). Vinte anos depois,
continuamos nisso. Não, não continuamos nisso. Vinte anos depois, piorou. E
veio aí mais uma Instrução Normativa (golpista) e tudo ainda piora mais. Muito
mais. As mesmas empresas, vinte anos depois. O mesmo sudeste, vinte anos
depois. Não, não, agora o Sudeste do Brasil também vai ter Minas Gerais e Espírito Santo (leiam as declarações
do Leitão, descobriram que o sudeste tem Minas Gerais e Espírito Santo). E a receita pra descentralização é pegar (mais) grana no mesmo Sudeste (agora
geograficamente ampliado) pra levar os espetáculos daqui para os caras das
outras regiões assistirem. Os musicais. Estão falando dos grandes musicais,
basicamente. Ou das grandes produções paulistas ou cariocas. É a versão do
teatro contemporâneo para o antigo catecismo dos jesuítas – cultura branca para
os nativos do Brasil. Cadê uma palavra sobre a captação para os próprios
produtores dessas regiões? Ou no Amapá não tem empresa grande que explora o
povo? Ou não tem artista de teatro no Amapá? Pior. A propalada concentração no
Rio-São Paulo nem é do Rio-São Paulo versus o Tocantins. É do Leblon contra a
Maré. É dos Jardins contra o Capão Redondo.
Fiz as contas. Quem mais captou pela Lei Rounet fomos nós
(as artes cênicas). Em 25 anos de existência do Incentivo foram quase quatro
bilhões. Ganhamos mais do que a música,
do que o patrimônio, ganhamos mais do que todo mundo. Dados do Ministério. Estão
lá, podem ver. Todo mundo, todo mundo pode ver. Quer dizer, todo mundo que
procurar com atenção, não é fácil decifrar a transparência daquelas tabelas do
Ministério. Cento e vinte milhões por ano no Sudeste (arredondei a média, na
verdade é mais, arredondei porque não sou bom de matemática, quem for bom de
matemática que refaça as aproximações, considerando os oitenta por cento de
concentração nessa agora ampliada região).
Digamos uns sessenta milhões no Rio, outros sessenta milhões em São
Paulo. Meio a meio, pra ninguém ficar chateado (esses dados de qual cidade
ficou com o quê eu não compilei, estão lá, mas haja paciência pra encontrar na
transparência daquele mar de tabelas). Pois
bem. Que maravilha! Como faz teatro esse sudeste! Quanto circo na cidade
maravilhosa, quanta gente dançando na pauliceia desvairada! Aqui no Rio, então.
É uma maravilha essas artes cênicas no
Rio de Janeiro. O carioca é cênico, não há dúvida. O carioca é um palhaço, é um bailarino! Bobagem.
Não tem palhaço nem dançarino, que dança, que circo coisa nenhuma. Que o teatro
não deixa. O teatro leva tudo, ou quase tudo, a maioria disso tudo. A grana
toda! Maravilha então! Quantas peças de teatro no Rio, quantos artistas de
teatro no Rio se dando bem! Que lindas plateias, que belos espetáculos de
autores nacionais, quantos festivais, quantos grupos, quanta gente feliz,
quanta critica boa, quanta saúde, quanta vitalidade. Como é útil o teatro
carioca, como é bem feito, como emprega, como é bom e como distrai.
Se todo o dinheiro captado pela Lei Rouanet nas Artes Cênicas para cidade,
viesse apenas pra montar peças de teatro no Rio de Janeiro e não
houvesse outra forma de produzir (outras leis, sesc, sesi, recursos próprios,
vaquinhas, etc) passaríamos quase a metade do ano assistindo a dois únicos espetáculos
de uma única produtora. Mais dois meses assistindo outros três ou quatro de
mais outras duas ou três. A cem reais o ingresso. E acabou, gastou tudo, não tem mais. (Na verdade ainda teria uma sobrinha de uns caraminguás prumas produções bem rapidinhas e bem baratinhas, vai lá saber como ainda deixamos essa merreca sobrar). É esse o modelo de captação que
a nova IN quer continuar. Para os pequenos nada. Esse é o resto do Brasil que é
aqui mesmo. Nem precisa ir no Nordeste. Nem precisa ir no Mato Grosso do Sul.
Aqui mesmo. E como pretendem curar esse desmazelo? (Mesmo eles reconhecem que é
um desmazelo deixar à míngua uns artistas tão bons e tão talentosos que só não
tiveram a sorte de passar num dos testes que não se fizeram para essa meia
dúzia de belos e bem construídos espetáculos teatrais). A solução? Ora, a solução... Aumenta-se o bolo.
Campanha para aumentar o bolo. Claro. Sessenta milhões (ano) não é nada. Que tal
duzentos milhões? Trezentos milhões não seriam suficientes? Ah, seu Ministro (golpista)
que bom! E para quem? Responde o Ministro: para os mesmos. Olhem a Normativa,
estudem a Normativa. Aumentar o bolo, MAS aumentar principalmente a parte de
cima da pirâmide. Claro. Entende-se. Custam muito os nossos musicais. Não estão
se pagando. São tão instrutivos e divertidos, mas custam caro demais. Mesmo aumentando o ingresso pra duzentos e
cinquenta, não vai dar pra pagar. Precisamos investir na arte boa. Arte boa é
arte cara. Mas atenção: só quem pode
produzir a arte cara são os mesmos. Troca-se a firma, talvez. Mas isso de firma
é uma mera formalidade. E os outros, senhor Ministro? E os pobres? Gente,
sinceridade. Aqui entre nós. Arte – pra pobre?
Mas é pior. Ainda pode ser pior. Ao longo de vinte e cinco
anos de casamento, a relação entre a meia dúzia de grandes produtores (exagero
de propósito ao me referir a eles como meia-dúzia, para provoca-los, a todos os
dez), eu dizia que ao longo de vinte e cinco anos de casamento entre a
meia-dúzia de grandes produtores e a meia-dúzia de grandes patrocinadores (os
patrocinadores na verdade são mais, são quinze, ou na verdade menos, são um só
e o mesmo: o governo – agora golpista – deste país), eu dizia estabeleceu-se
uma rede de favores e brindes e contrapartidas de visibilidade de marca e
arranjos e distribuição de dinheiros por baixo dos panos e tanta coisa que já
virou até processo criminal e até CPI (mas o que não vira CPI nesse país, me
diga, pode-se levar a sério?) que agora é preciso fechar a ratoeira. Não pegar
os ratos, fechar a porcaria da ratoeira. Quantas medidas na IN para pegar os
que fazem mau uso da Lei? Não o mau uso no sentido de fazer espetáculos ruins,
ou sem sentido, ou caros, ou mal feitos (os artistas erram, se enganam, nem
todo mundo sabe cantar como convém, o sujeito pode ter uma fase ruim, como o
jogador de futebol tem fases ruins). Mas o mau o uso no sentido de botar no
bolso o que não lhe pertence. Esse mau uso. Que a falta de transparência
perpetua. Quantas medidas na IN para coibir esse mau uso? Não estão lá. Estão lá
outras para transformar a má fé em descuido, o roubo em engano, a propina em um
novo tipo de remuneração.
Recentemente entrei num grupo de artistas abnegados que
cismaram que podem tirar do buraco a SBAT. Também entrei no MATER, um grupo de
artistas que pretende dar um sentido mais profundo ao teatro do Rio. Pois bem. O
MATER é puro, quase imaculado, estamos começando apenas, não roubamos, não
pegamos nada de ninguém. O grupo da SBAT também, os que estão lá agora, outras
gentes (alguns em comum com o MATER,
inclusive), nada a ver com o pessoal que esteve na SBAT umas décadas
atrás e destruiu sua reputação centenária com algumas dúzias de falcatruas e
falta de juízo e deixaram um rombo que equivale ao valor de quase meio musical.
Mas como é difícil carregar os erros dos outros. Como é difícil convencer as
pessoas de que um e outro, nesse momento, são a mesma coisa, estão irmãos na mesma
causa, eu mesmo sou ambos, não sou
ladrão num e honesto no outro, eu sou o mesmo nos dois (e acho que honesto). Porém
o mundo não entende assim. O mundo quando acusa pecados cobra penitências. Esse mundo que vivemos às pressas não tem olhos para distinguir, ele gosta de misturar e simplificar. Eu mesmo
estou fazendo um pouco disso aqui, misturando uns dados, juntando vinte e cinco anos numa única página
de texto (ou duas), para que as pessoas entendam logo, para não ter que ficar
horas explicando o que ninguém parece ter horas pra tentar entender. Então imaginem.
Amanhã a poeira baixa. Um dia (talvez) a poeira baixe. E nós estávamos lá, os
vagabundos da Rouanet, misturados aos outros (os poucos de sempre, sempre os poucos de sempre), e
se não pegamos nada pra nós, deixamos que os outros levassem. E, a vinte anos
do lugar do roubo, pela lupa de algum mal intencionado, quem distingue o ladrão
do assaltado? Talvez minha neta ainda tente argumentar: vovô não estava lá. Ao
que alguém sempre pode perguntar: mas estava morto? Não. Não estou.
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